sexta-feira, 25 de abril de 2008

Instantâneo


É violento e sujo aquilo que sentes quando ele olha para ti. Ele é o ócio, a transgressão e o vício disfarçados sob umas quantas palavras ensaiadas. Ele julga-se dono da verdade, e essa verdade não é igual à tua. Ele é clarividente e eloquente quando fala e tu detestas todas as palavras que lhe saem da boca. Ele é tudo o que tu não és. Tudo o que não queres ser. E tu conservas em segredo um ódio por ele, que cresce sempre que ele sorri e te dá um beijo na face sem perceber que não suportas o seu toque.
Hoje, a noite está fria. Conduzes pelas ruas estreitas da cidade, com ele sentado no banco ao lado. Perguntas a ti própria por que é que tinhas de ser tu a dar-lhe boleia. Não encontras o caminho e o facto de ele estar constantemente a mexer no rádio começa a irritar-te. Amaldiçoas os paralelos, os carros mal estacionados, a péssima sinalização, tão característica da Baixa, e a meia dúzia de pessoas que decide atravessar a rua com o semáforo vermelho. Por fim, acabas a estacionar o carro longe demais do local de destino. Sais e dás uma moeda ao arrumador que esboça um “obrigado”. Começas a descer a rua em passo acelerado e é com alívio que, finalmente, encontras o resto do grupo, que já estava à vossa espera. Assim que entras no bar, deixas-te afundar num dos pequenos sofás. O calor, o som familiar das vozes que te rodeiam, e a luz fugidia e amarelada do local reconfortam-te. E é entre um trago de chá que fixas o olhar dele, pela primeira vez, em toda a noite.
Hoje, querias ter coragem de perder a cabeça. Tu, que o odeias, querias sorver-lhe o sabor do tabaco e do café, misturado com o cheiro da sua camisa impecavelmente lavada. Querias imergir com ele no negro ensurdecedor e hedónico da noite. E nem te importarias com as marcas que irias guardar na pele durante dias. Não lamentarias sequer o facto de ele se afastar, quase de imediato, da tua presença. Não, tu partirias primeiro. Antes de amanhecer.
Hoje, apenas hoje, serias capaz de vender a alma à instantaneidade do momento e, talvez assim, pudesses libertar-te da tua própria existência.

quinta-feira, 13 de março de 2008

Interregno


A música que agora soa nos meus ouvidos é a mesma que tocava no momento em que escrevi pela primeira vez neste blog. Foi um amigo meu, um grande amigo, a enviar-ma há já muito tempo. Estava esquecida no meio da enxurrada de ficheiros de música que guardo no computador e, hoje, eu decidi ressuscitá-la. Ela decidiu trazer-me até aqui.
Durante estes seis meses de interregno em que aqui não escrevi, foram muitas as vezes em que pensei encerrar este espaço. Encerrar e começar num outro lugar, com outro nome, outra face, outra cor. A verdade é que até cheguei a elaborar uma espécie de rascunho para um novo blog, mas acabei por não levar a sua concretização avante.
Sou, agora, obrigada a confessar que esta ideia de criar um novo espaço para a escrita está visceralmente associada a uma sede de mudança que me assolou há uns meses. Eu, a menina certinha, que vai sempre a ler um livro no comboio, que tem arquivados todos os cadernos e todas as folhinhas que escreveu desde a primária até ao ensino superior, que lê o jornal, e que faz questão de ter uma opinião sobre tudo e mais alguma coisa. Eu, Ana Sofia, decidi mandar essa ideia de perfeição, que tenho colada a mim desde criança, para trás das costas e mudar de rumo. Não, não resolvi enveredar pelo mundo artístico ou fazer as malas e partir sem destino. Decidi perseguir um sonho antigo. Um sonho que não vou revelar. Falemos disso talvez em Setembro. Neste momento, importa dizer que mantive este blog de portas abertas porque quero fazer dele aquilo que estou a tentar fazer comigo. Lavar a pele de toda a poeira que deixei que se arraigasse a mim. Não me interpretem mal, não pretendo apagar, nem esquecer nada do que fiz, do que fui, do que sou. E é por isso que vou continuar a manter disponíveis textos nos quais já não me revejo, nem do ponto de vista pessoal, nem do ponto de vista criativo. Não vou alterar as vírgulas que vi fora do sítio, ou aquelas construções gramaticais que, agora, parecem estar a estragar a harmonia das palavras. Acredito que os erros e as hesitações que cometi são portadores de um sentido. Tudo o que quero é mergulhar de cabeça na água, deixando que, pela primeira vez, o frio me trespasse e me desperte até aos ossos. E eu acorde dentro do sonho.
Não vou viver como alguém que só espera um novo amor
Há outras coisas no caminho aonde eu vou.
Às vezes ando só, trocando passos com a solidão,
Momentos que são meus e que não abro mão.
aa
Já sei olhar o rio por onde a vida passa
Sem me precipitar e nem perder a hora.
Escuto no silêncio que há em mim e basta,
Outro tempo começou pra mim agora.
aa
"P'ra rua me levar", música e letra de Ana Carolina e Totonho Villeroy.

sábado, 15 de setembro de 2007

Intermitências


(§ofia)
aa
A luz está ainda acesa. E o galo que canta lá fora assiná-la o culminar de uma noite em branco numa manhã fria e cinzenta.
Doem-me os medos. Doem-me essas horas que passam ao sabor dos ponteiros do relógio e os dias sem destino. Tenho o corpo entorpecido pelos passos que não dei e as mãos calejadas à força das palavras que não escrevi. Queria gritar, mas a voz enrola-se na garganta e dissipa-se antes de produzir qualquer som.
Quantas imagens vês no espelho, Sofia? Quantas vezes já te apeteceu afogar a cabeça na almofada para nunca mais de lá sair? Diz-me por que razão o oxigénio que te corre no sangue te está a corroer aos poucos. Diz-me por que motivo já não há nenhum fragmento de ti em que seja capaz de te reconhecer.
Eis que chegou a hora da encruzilhada. E tudo o que me resta são os resquícios de uma alma esfarrapada e prostrada, consumida por essa vontade cega de infinito. Os sete palmos de terra que um dia cobrirão o meu rosto feito em pó são tudo o que possuo. Carrego comigo apenas alguns anos atrás das costas e o oceano dos meus olhos que quase nada viram. Estou num lugar sem nome, nem Norte, no qual as horas discorrem até à exaustão. E onde permaneço inerte nessa fracção de tempo estanque entre a mão e o toque.
aa
aaaa

§o(...)fia

Da água que nos gela até aos ossos erguem-se, majestosas, as rochas. Um vento vindo de Norte vagueia pelas ondas e corta a réstia de calor de um Sol já fugido.
À semelhança de todas as outras tardes, ela está lá, um pequeno ponto no meio do oceano. Reparo que tem o nariz queimado e a pele esbranquiçada pela salina, ao sair da água. É bonita e tem a felicidade tatuada nas covinhas que se formam em cada um dos cantos dos lábios quando sorri. Chama-se Sofia e o nome assenta-lhe bem. É inteligente e extrovertida. Fala alto, por entre gestos largos e afáveis, e aqueles que agora a rodeiam, sentados na areia, bebem-lhe as ideias e o olhar. Todos quantos a conheçam elogiar-lhe-ão a garra e o bom-senso com que encara a vida
E, no entanto, há nela algo inquietamente profundo, demasiado devastador para ser revelado. Ninguém sabe qual o segredo que guarda trancado dentro de si, mas dizem por aí que, por vezes, o liberta, durante a noite, quando está a sós. Não imaginam eles que ela se encontra comigo todas as noites. A uma hora suspensa no tempo. E que, dançando sem nunca nos tocarmos, ela deixa de ser uma outra pessoa, para passar a ser um outro eu. Um eu visível e igualmente verdadeiro que, ao contrário de mim (que aqui escrevo), sabe o caminho para casa.

quarta-feira, 11 de julho de 2007

À meia-luz

"Mirror Women- Mirror Heads"
Salvador Dali

Olha para mim. Só eu estou aqui. Eu e o meu corpo nu, a esta luz crua. Despida à força de uma timidez obrigada a evadir-se. É assim que sou, sem o cabelo arranjado com afinco todas as manhãs, nem a maquilhagem que tu nunca notas, ou finges não notar. Hoje, não coloquei o perfume de sempre, não vesti a camisola que me realça os olhos, não calcei um dos tantos pares de sapatos desconfortáveis que tenho guardados no armário. Não enveredei pelo ritual de artifício que antecede, todas as vezes, a tua chegada.
Gostava de saber o que vês. Gostava de saber se reparas nas sardas que tenho no nariz, ou na cicatriz que fiz, há muito tempo, em casa dos meus avós. Gostava de saber o que vês para lá da minha pele sempre tão branca, sempre pronta a mostrar qualquer sinal de sensibilidade ou de imperfeição.
Não preciso que me ames. Não preciso do aconchego das tuas palavras doces. Toda a vida fiz questão de permanecer estoicamente a sós com os meus medos. Só preciso que olhes para mim e que me vejas sem a redoma de vidro frágil que carrego invariavelmente aos ombros. Quero que me vejas assim. Nua. Revelada. Porque, sabes, eu não sou essa luz, nem essa eloquência de que falas. Eu sou, muitas vezes, esse céu sufocante e avermelhado das grandes cidades onde não há luar, onde os jardins não são mais do que o antro de putas e pederastas, e onde as únicas luzes acesas são as dos vãos de escada de outros tantos vícios vis e lascivos.
Abre a porta e sai. Parte antes que o medo de te perder seja maior do que o de te ter comigo, antes que as esferas dos nossos mundos se quebrem e dispersem para sempre a nossa essência. Não quero que me ames. Não quero sequer que gostes de mim. Não quero que compartilhes comigo este espaço à distância de uma mão estendida do lugar dos sonhos. Esse fardo é só meu. E, se um dia o destino decidir arrombar as portas de sombra e a luz entrar pelos meus olhos, espero por ti à meia-noite, algures entre a vírgula e o ponto final. Nesse lugar à meia-luz, que nunca te contei, mas que sabes onde fica.

quarta-feira, 23 de maio de 2007

Boca de cena


A luz perde-se na obscuridade da sala, recortada pelo negro que escorre do tecto até ao chão. A cortina abre-se e a luz bate-nos certeira nos olhos. Cega-nos e não vemos nada, a não ser uma massa escura de gente, que sabemos ter os olhos pregados em nós. Fixamos o olhar no tortuoso silêncio que se estende à nossa frente, e ficamos ali, presos a um corpo que não é e não pode ser o nosso. Quando a voz finalmente soa, parece-nos sempre demasiado baixa, quase inaudível. A vertigem do momento obriga as palavras, já automatizadas, a soltar-se da garganta. Esboçamos gestos ensaiados e emoções provenientes do fundo do nosso olhar, que, naquele momento, nos é exterior.
E ela, por vezes, chega. Funde-nos com o reflexo da nossa personagem, num espelho de arestas demasiado afiadas, para que se possa sair dele. Nada mais existe a não ser aquele chão de madeira velha sob os nossos pés e o nosso corpo, que nunca esteve tão nu. Alguns chamar-lhe-ão arte, enquanto outros, movidos por uma intelectualização forçada, dirão que se trata da realidade. O certo é que deixamos de pensar em todas as anotações cénicas, que nos foram enchendo páginas e páginas de um texto, que decoramos com afinco. Tomamos como nossa a vida de alguém, que, afinal, não passa de um vulto inexistente, que só ganha consistência graças ao sal das nossas lágrimas e ao movimento do nosso corpo. O riso e o choro saem de nós com uma força catártica, até que a nossa voz se quebra no clímax de um grito e a cortina se fecha.
Voltamos à escuridão. Os aplausos vindos do exterior vão sendo cada vez menos audíveis. Tudo se cala. Nós estamos escondidos. Sós, uma vez mais. Temos o cabelo desgrenhado, o corpo num farrapo. Aquele espaço escuro volta a ser apenas um palco. E nós partimos, desfiados, descosidos por dentro.
Hoje, a cortina não se vai voltar a abrir. Vemo-nos, talvez amanhã, à boca de cena. Sem luz, ensaio, nem texto. Apenas nós. E os pedaços de nós.

segunda-feira, 9 de abril de 2007

Dentro de ti


Apetece-me ficar aqui. Os olhos pregados no tecto, o corpo envolto num algodão branco e macio. Aqui. Imersa no silêncio da janela entreaberta, por onde começa a entrar a luz.
Da cozinha, chega até mim o cheiro aromático e inebriante do teu café, que gostas de preparar todas as manhãs, como se de um ritual se tratasse. Consigo imaginar o teu cabelo, ainda despenteado, as mangas da camisa puxadas para cima, as tuas mãos grandes e desembaraçadas. Consigo adivinhar que andas à procura da compota de framboesa em todos os armários. Sei que tens o jornal aberto sobre a mesa, embora nunca tenhas tempo de o ler.
Sempre foste uma criatura da manhã, de sorriso estampado no rosto logo ao acordar. Um sorriso de miúdo, capaz de me fazer abandonar o torpor reconfortante e quente da noite. Eu, que sou, definitivamente, um animal nocturno.
Daqui a pouco, vais entrar com uma chávena de café na mão e sussurrar-me ao ouvido que sou bonita, apesar da frase não passar de um cliché, demasiado usado para ser sentido, e de ambos sabermos que é mentira. E eu vou sorrir e afogar-me no teu abraço. Vou esquecer a noite de insónia e essa contínua incerteza que me penetra até aos ossos, todos os dias.
Apetece-me ficar aqui, nos teus olhos, no teu cheiro, no teu toque. Sem o carinho artificial da falsa timidez, nem o prazer contido à força das portas que não fecham. Aqui. Neste nosso submundo, onde a música que toca no final é sempre a nossa preferida e onde, todas as vezes, nos perdemos numa dança entrelaçada.
Não pretendo a compreensão das lágrimas afagadas, nem a doçura das palavras ditas num murmúrio. Que as lágrimas caiam, a pele se rasgue e a voz se quebre num grito. Que as quatro paredes que nos rodeiam abram na janela de cortinas afastadas e que a luz entre, cada vez mais intensa, e nos invada, nos estilhace por dentro. Até que não reste mais nada a não ser o sabor do sal da nossa pele.
aa
Hoje, apetece-me ficar. Dentro de ti.